sábado, 7 de agosto de 2010

Comentário: De ente et essencia - Capítulo I

Tomás de Aquino:
1-Proêmio[omitido aqui]
2-a) O conhecimento das coisas simples, nós o recebemos das coisas compostas. Ademais, é partindo das noções posteriores que atingimos as primeiras noções.
  • Corpos simples: Corpos indivisíveis
  • Corpos compostos: Corpos formados por diversas partes simples ou compostas
  • Noções posteriores: Noções derivadas de outras noções
  • Noções anteriores: Noções primeiras e irredutíveis
Explicação:
Para a escolástica, o termo "coisa" significa o objeto do conhecimento uma vez conhecido. Quando Tomás de Aquino se refere à coisas simples, está portanto se referindo à algo-simples conhecido. A inteligência humana encontra a essência das coisas através da observação material. Ora, a matéria é algo composto, se partimos da matéria ao conceber noções menos gerais para conceber noções mais gerais, partimos de noções posteriores para adquirir noções anteriores. Primero passamos pelas idéias de gato, cão. boi, peixe, sapo para depois só então conceber a idéia de animal. Isso é próprio da inteligência humana. Os anjos partem da essência da coisa para conhecer a matéria, passam pois, de noções anteriores às noções posteriores.

Tomás de Aquino:
2-b) Assim sendo, para que também esta explanação , que se inicia pelas noções mais fáceis, seja mais adequada ao tema sobre o qual versa, devemos atingir o significado de essência, tendo como ponto de partida o significado de ente.

Comentário de Dom Odilão Moura: A explicação começada pelos conceitos compostos e posteriores é de mais fácil aceitação. Assim sendo, a exposição deste Opúsculo (De ente et essencia) dever iniciada pela noção de ente, que pertence àqueles conceitos, para se atingir a noção de essência.



Tomás de Aquino:
3- Convém saber que, como diz o Filósofo (Aristóteles), no Livro V da Metafísica, o ente, visto em si mesmo pode ser tomado em duplo sentido: no primeiro, enquanto se divide nos dez gêneros; no segundo, enquanto significa a verdade das proposições.

Explicação:
" Os predicamentos são atributos do ser, modos especiais sob os quais o ser pode existir, isto é, o conjunto de gêneros supremos em que se distribui todo o real." (Jolivet 1965)
O ser é ou substância ou acidente. Substância quando existe em si mesmo, acidente quando existe em outrem. Assim sendo, há 9 possíveis maneiras do ser existir em outrem e uma maneira de existir em si mesmo. Contudo, segundo Jolivet, essa divisão é passível de aperfeiçoamento, através da integração de uns conceitos e expansão de outros. Por exemplo, o conceito de movimento poderia ser mencionado como ligado ao espaço e ao tempo, mas alguns consideram o movimento como um gênero supremo. Acrescenta ainda que nem o próprio Aristóteles enumera os gêneros da mesma maneira nos seus tratados.
  • Dez gêneros:
  1. Substância: Aquilo que algo é. ex.: Homem, Gato, Cão etc.
  2. Quantidade: ex.: dois carros, 1000 reais. A quantidade pode ser abstraída do ser ao qual ela é acidental ou essencialmente atribuída, assim é que a matemática abstrai o ser contável. (1 + 1 = 2)
  3. Qualidade: O que pode ser atribuído à algo, geralmente adjetivos. Ex.: Branco, Grande, Pequeno.
  4. Relação: Alguma entidade que o é, devido à relação/comparação com outra entidade. ex.: O gato é menor que o cão.
  5. Lugar: Posição no espaço. Ex.: Na escola, na casa, no parque.
  6. Tempo: ex .: no dia anterior.
  7. Posição: Ao contrário do lugar, a posição é um estado adquirido pelo ser em relação a si mesmo. ex.: em pé, deitado, de costas.
  8. Posse: A posse é simplesmente o ato de ter algo. Não necessariamente algo material. O olho possui a visão. Numa análise mais perfeita, fulano está armado; isto é, possui uma arma.
  9. Ação: Quando um ser atua em outro ser ou em si mesmo. ex.: O rato roeu a roupa do rei.
  10. Paixão: Quando um ser sofre a ação de outro ser. A frase do blog, vem de Aristóteles e significa "A ação está no paciente", de forma que, segundo ele, se a ação fosse extrínseca ao ser que a sofre, não poderia ele, sofrer a paixão.
  • Verdade das proposições:
    As proposições podem ser falsas ou verdadeiras. As proposições falsas não possuem entidade e por conseguinte não possuem essência. É por isso que o possível ente "João alto e baixo" não existe. Na verdade não é um ente. As verdadeiras possuem entidade sempre, contudo há alguns casos em que, devido à manobras linguísticas, parecem não a possuir. É o caso de "Não gosto de ler ." ou "Me arrependo do não fiz." ainda em "Fulano não é inteligente" ou em "Fulano é surdo". Embora haja coesão lógica nessas proposições, há uma incoerência metafísica.
    Não pode haver um ato de não gostar. O que há é "Gosto de não-ler". Não pode haver arrependimento de não ação, visto que se o ser não é ativo, não pode ser arrepender. Nesse caso, há uma confusão linguística em que não fazer algo, implica exatamente em fazer outro algo. Claro que por motivos práticos, a língua deve se estabelecer dessa forma, contudo não se pode levar esse estabelecimento até o nível ontológico. Em "Fulano não é inteligente", como pode Fulano não ser? Obviamente se ele é, é. O que fica nessa frase é que fulano tem a privação da inteligência, da mesma forma em "Fulano burro". Fulano não pode ser burro, uma vez que a burrice nada acrescenta ao ser; ao contrário, retira algo. O mesmo raciocínio ocorre em "Fulano surdo". Ademais, porque parece absurdo dizer que a pedra é surda? Toda pedra é surda, mas a sensação de absurdo ocorre já que não se faz necessário afirmar o que a pedra não é, já que a inteligência (sendo algo feito para conhecer a verdade e por isso mesmo o ser) não consegue lidar com o não ser. Em face aos exaustivos exemplos, temos dois tipos de ente no que tange a verdade das proposições, as privações e as negações.
Tomás de Aquino:
Vejamos em que se diferenciam esses dois sentidos.
Considerado o ente no segundo sentido, tudo aquilo de que se possa formar uma proposição afirmativa pode ser dito ente, embora nada ponha na coisa. Assim é que as privações e negações são ditas entes, pois dizemos que a afirmação é oposta à negação, e que a cegueira é nos olhos.
Considerado, porém , o ente no primeiro sentido, não pode ser dito ente senão aquilo que ponha algo na coisa. Eis porque, neste sentido, a cegueira e as noções semelhantes à ela não são entes.

Explicação:
Não se pode confundir idéia com imagem. A idéia é a representação determinada de um objeto sensível. Já a imagem é o meio psíquico pelo qual os animais representam, conservam, reproduzem e combinam objetos sensíveis. Por isso se afirma que os anjos não imaginam, que os animais imaginam e que o homem não pensa sem imagens. Visto que: (1) A inteligência angélica por apreender a essência das coisas sem necessidade de um estímulo sensível, o anjo não precisa imaginar para ter idéias e por conseguinte, para pensar. (2)O animal como recebe estímulos sensíveis(luz, cor, som, odor etc), possui a imagem das coisas. Assim é que o gato vê o rato ao longe e se pões a pegá-lo sem fazer uso da razão, apenas "imaginando" a sequência de operações necessárias para se aproximar do rato. (Esticar a perna de traz, erguer a perna da frente etc). (3)Contudo não se pode confundir a imaginação com o ato de pensar. O homem é um ser racional, mas um ser racional que usa do mundo sensível para raciocinar, dessa maneira acaba servindo-se das imagens para se ter idéias e das idéias para raciocinar. No homem, a idéia de círculo, equivale a muito mais do que uma circunferência traçada num quadro. A idéia de círculo é acidentada pelos conceitos gerais e objetivos que envolvem o círculo (como a forma do círculo e suas relações matemáticas), bem como conceitos subjetivos (como a significância do círculo para alguns). Podemos exemplificar com a palavra "gato". A palavra "gato" representa linguisticamente uma idéia complexa, na qual estão envolvidos diversas imagens e mesmo outras idéias(imagem do pelo do gato, miado do gato e idéias como "animal", "mamífero" etc). Eu posso usar essa idéia de gato para ter aulas numa faculdade de veterinária.
Então, como vemos, nem a imagem, nem a idéia constituem o raciocínio propriamente, senão apenas ferramentas de raciocínio.
A lógica classifica as idéias como mentais ou objetivas. As idéias mentais são as coisas concebidas enquanto concebidas e as idéias objetivas são as coisas concebidas enquanto coisas. Em outras palavras é possível encarar a idéia sob duas perspectivas. De um lado está idéia como objeto do conhecimento humano. Por que,se faz mister notar, o homem não conhece a própria coisa no ato, senão a idéia que representa a coisa. A essa idéia concebível, damos o nome de idéia mental. À idéia objetiva, pertecem idéias que tem um valor de identidade com o objeto ao qual representam, de forma que a inteligência ao conhecer essa idéia, conhece o próprio objeto.
Se é possível que a mente humana conceba idéias independentemente das coisas, como são algumas idéias mentais, é possível que existam idéias irrealizáveis fora da mente humana. Assim é que a lógica distingue entre entes reais e entes de razão(entes lógicos).
O ente real é tudo aquilo que é realizável fora da inteligência, mesmo que de forma fantástica. Conceber um trem de ouro é uma tremenda insanidade, contudo é algo totalmente realizável se se tivesse dinheiro, ouro e dedicação necessárias à sua realizaçao. Desta forma, trem de ouro é um ente real.
Já as negações e privações, noções gerais são adversas à isso. Elas são irrealizáveis fora da inteligência. Afinal, o que é o nada? Não é nada. ou melhor: O nada não é. Ele não existe, mas se temos uma palavra para representar essa idéia de "não-existência-absoluta", é por podermos conceber coisas irrealizáveis. É o mesmo com as negações. Ininteligência, inaptidão etc são exemplos de idéias que temos de coisas que são irrealizáveis. Nesses casos só se tem uma idéia p'ra representar essas coisas, porque há coisas realizáveis à que se negam com essas negações. Há inteligência, há aptidão e quando consideramos algo inapto ou ininteligente, só o fazemos para determinar que lhe falta aquilo que normalmente teria. Ainda acontece o mesmo com noções gerais. Humanidade, deidade entre outros conceitos gerais, são irrealizáveis. Afinal não existe humanidade como tal independentemente do homem. O que há é o homem e a inteligência por perceber um padrão de ocorrências, define esse padrão como que abstraindo do objeto as características que lhe são comuns, assim são criados os conceitos gerais. Desta forma, humanidade, nada e ininteligência são entes de razão.

Comentário de Dom Odilão Moura:
Noção de ente. É apresentada a noção de ente segundo sua divisão em ente real e ente de razão. Aquele, pertencem os predicamentos, a este, as privações e as negações. Deve-se saber que ente não pode ser definido por ser conceito universalíssimo: toda e qual outra noção que o queira esclarecer não o esclarece, porque ela é também ente.

Explicação:
Uma idéia pode ser tomada do ponto de vista da extensão e da compreensão.
  • Extensão: Conjunto de seres aos quais a idéia convém.
  • Compreensão: Conteúdo de uma idéia.
Assim, a idéia de computador se extende à tal e tal objeto e a idéia de máquina está compreendida na idéia de computador. Por isso a idéia de ser, que compreende nenhuma idéia é a mais extensa e indefinível. Já a idéia de "Wolfgang Mozart" em todos os seus atributos é também indefinível por compreender diversas idéias e se extender à apenas um ser.
Já os predicamentos à que se refere D. Moura, já foram explicados acima. Os predicamentos são os modos de existir e segundo Aristóteles são dez os modos de existência, listados acima como os dez gêneros supremos.

Tomás de Aquino:
Por conseguinte, o nome de essência não se pode derivar de ente tomado no segundo sentido, pois, neste, são denominadas entes coisas destituídas de essência, como se verifica nas privações.
Essência, porém, origina-se de ente enquanto concebido no primeiro sentido. Eis porque o Comentador (Avicena), ao discorrer sobre o texto de Aristóteles acima citado, afima que "Ente concebido no primeiro sentido é aquilo que significa a essência da coisa".
E porque, como foi dito, o ente considerado neste primeiro sentido divide-se nos dez gêneros, deve a essência significar algo comum a todas as naturezas, mediante as quais os diversos entes são colocados nos diferentes gêneros e espécies. Assim é que, por exemplo, a humanidade constitui a essência do homem e semelhantemente isto se vai repetindo nas demais coisas.

Comentário de Dom Odilão Moura:
Noção de essência. Etimologicamente, essência (essentia) deriva de ente (ens). Conceitualmente, porém, essência pertence só ao ente real: é algo comum às substâncias e aos acidentes.